sábado, 7 de junho de 2014

Culpar o Tribunal Constitucional para esconder a incompetência.


Opinião
Fernando Madrinha
Culpar o árbitro
Quando um resultado não serve, culpa-se o árbitro. E quando as derrotas se sucedem, culpa-se o «sistema». É assim no futebol português e a política vai pelo mesmo caminho. Talvez chegue o dia em que a própria linguagem se torne tão malcheirosa como aquela com que o presidente do Sporting brindou as televisões esta semana.
Estava o país político entretido com a guerra pela liderança do PS e ainda embalado por uma saída tão limpa que o milagre parecia acontecer, quando um acórdão do Tribunal Constitucional veio chamar o Governo à realidade. Por mais que insista, a Constituição não está suspensa, o Tribunal existe e os juízes não são deputados da maioria, ao dispor para todos os fretes. Como se conjuga isto com a tutela externa e com aquele comissário europeu tão agastado por ter de lidar três vezes por ano com os «chumbos» do TC português? Não deve ser fácil.
Custa a crer, todavia, que um Governo cuja política de reformas se tem resumido aos cortes a eito, sabendo que os faz, reiteradamente, no limite da constitucionalidade das leis, não tenha um plano B. Decerto que o tem, mas ainda não quer que se saiba porque, desta vez, optou por enfrentar o árbitro. Primeiro, requerendo uma «aclaração» do acórdão, expediente inédito que alguns especialistas consideram improcedente à luz de alterações no Código do Processo Civil introduzidas há um ano pelo próprio Governo. Depois, entrando num crescendo de críticas aos juízes, com o primeiro-ministro a afirmar que é preciso escolhê-los melhor. Talvez impor-lhes, antes de eleitos, não que zelem pela Constituição, enquanto existir, mas que se dobrem perante o Governo em funções ou os partidos que os propõem para o cargo...
Nunca um primeiro-ministro chegou tão longe na afronta ao tribunal. Pode-se argumentar que também nenhum Executivo teve de governar no colete-de- forças em que este o faz, entre uma «troika» que despreza as instituições da República, no que é acompanhada pelo próprio Governo, e uma Constituição que garante o leite e o mel, mesmo quando deixam de correr. Mas isso não explica tudo. Se Passos seguiu este caminho foi porque lhe parece conveniente. Perante um PS em crise de liderança, testa a sua força política abalada pela derrota nas europeias e procura uma causa para insinuar, sem o admitir e talvez para nunca a concretizar, uma hipótese de demissão. Com a ameaça implícita de que uma crise, neste momento e nestas condições, encaminharia Portugal para o segundo resgate. É um jogo perigoso, a que também se pode dar o nome de chantagem – com o Tribunal, com o Presidente, com o país.
Cavaco Silva estava certo ao propor um acordo para eleições antecipadas nesta altura, oferta que o líder do PS, hoje talvez arrependido, não aceitou. Daqui em diante, o que se espera é o que está à vista: um manobrismo politiqueiro e eleitoralista em que vale tudo, com danos para as instituições e instabilidade crescente até às legislativas. Um ano para esquecer.

O líder anulado
António José Seguro pôs aquele ar sério e vagamente ameaçador ao dizer «habituem-se, porque isto mudou», mas o país ainda não sabia como o secretário-geral do PS tinha mudado. Foi preciso esperar por duas entrevistas televisivas para se perceber a metamorfose operada. O que agora nos aparece na TV é um Seguro renascido, a transpirar confiança e a debitar ideias em torrente para revigorar o sistema político. Mudou o tom, levantou a voz e apresenta-se como o mais dinâmico líder com que os socialistas podiam sonhar.
Tratando-se da mesma pessoa, até agora incapaz de um rasgo ou de uma ousadia fora da caixa em que o discurso e a pose estavam formatados, haverá quem se interrogue sobre se mudou de um dia para o outro – e tanto que hoje defende as primárias com o mesmo vigor com que antes as combateu -, ou se, como no teatro, apenas assumiu um novo papel. A explicação deu-a ele próprio: «Anulei-me durante três anos para manter a paz no PS».
Ora, um líder que é capaz de se «anular» e se dispõe a fazê-lo durante três longos anos para manter a paz no partido, quer dizer, para se manter no lugar, pode ser um actor de gabarito, mas não lidera coisa nenhuma. Limita-se a administrar as suas fraquezas. Seguro confessa-o, neste desabafo fatal.
É pena os chefes partidários não serem desafiados mais vezes por adversários internos, porque isso os obrigaria a não se «anularem», ou fazerem de conta. Tanto que, mal se sentiu inseguro, António José sacou de um arsenal de propostas que, assumidas noutro contexto, podiam tê-lo salvo das agruras que agora sofre. Até porque, muito provavelmente, os resultados das europeias seriam bem mais positivos para o PS.
As primárias são uma boa ideia que, tarde ou cedo, fará o seu caminho e as restantes iniciativas, apenas enunciadas – mudanças no sistema eleitoral, redução do número de deputados, combate à corrupção e à promiscuidade entre política e negócios – correspondem a necessidades já tão discutidas que se tornaram lugares-comuns. Parece que Seguro só se deu conta disso quando olhou para os resultados eleitorais e se viu confrontado com António Costa. Tarde de mais.
Tivesse o secretário-geral do PS aproveitado estes três anos para batalhar nas propostas que agora tirou da cartola à pressa e não teria chegado ao ponto a que chegou. Preferiu «anular-se», segundo afirma. Só pode queixar-se de si próprio


 

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